Afonso da Costa 15/05/2023
A problemática da habitação é uma das principais preocupações das sociedades modernas, especialmente nas grandes cidades onde o acesso a alojamento pode ser escasso e dispendioso. Em Portugal, o Governo tem adotado medidas para fazer frente a este problema, incluindo a imposição do arrendamento obrigatório de imóveis devolutos, medida que será implementada brevemente. Contudo, esta ação tem suscitado debates acalorados e controversos, levantando questões acerca do papel do Estado na propriedade privada e a efetividade da medida em si. Neste ensaio, irei analisar esta questão do ponto de vista filosófico e jurídico, procurando avaliar até que ponto o Estado pode interferir na propriedade privada sem violar os direitos dos cidadãos.
Sobre esta temática, surgem perguntas: “Até que ponto o Estado pode interferir na propriedade privada sem infringir as liberdades individuais?”; “A obrigação de arrendamento dos imóveis devolutos é uma medida justa e necessária para combater a falta de habitação ou uma forma de violação do direito de propriedade?”. Proponho-me a defender a tese de que a medida do pacote “Mais Habitação” é inconstitucional e desfavorável para a sociedade e para a economia.
Há diversas razões para pensar que esta proposta não é a melhor.
Primeiramente, já houve tentativas semelhantes do Governo passadas, todas falhadas. Temos como exemplo um diploma de 2000, que contempla as obras e os arrendamentos coercivos, como relembrou, numa entrevista à SIC, Victor Reis, arquiteto e ex-presidente do Instituto da Habilitação e Reabilitação Urbana. “E eu pergunto: vinte e dois anos depois deste decreto de lei ter entrado em vigor, quantas casas é que os portugueses sabem que foram arranjadas, reabilitadas e arrendadas nesse sistema? Eu não conheço uma.”.
Em segundo lugar, esta proposta impede o proprietário de decidir livremente o destino da sua propriedade. A propriedade privada é um direito fundamental garantido pela Declaração Universal dos Direitos Humanos e não deve ser violada pelo Estado. A proteção da propriedade privada é fundamental para o funcionamento adequado de uma sociedade livre e justa. Permite que os indivíduos tenham incentivos para investir, inovar e empreender, criando riqueza e promovendo o progresso económico. Com o Estado a entrar nas casas das pessoas e a ocupá-las, o direito de propriedade privada está a ser claramente negligenciado. Confesso que esta proposta me remete à União Soviética, quando Estaline expropriou propriedades, especialmente agrícolas, e as transformou em cooperativas e unidades produtivas estatais, com o intuito de solucionar a crise da distribuição de produtos agrícolas. Esta ideia foi um grande fracasso. O povo estava furioso, e a crise ainda se agravou mais.
Outro ponto é que os municípios já estão subcarregados com imensos fogos por reabilitar. A Câmara Municipal de Lisboa tem treze mil fogos para recuperar. Muitos destes têm mais de trinta anos e nunca foram reabilitados. Com a aprovação da medida terá ainda mais fogos para adicionar à lista de espera.
Também se tem de considerar que os senhorios e os futuros investidores vão ficar bastante assustados. A proposta terá um efeito dissuasor sobre a construção de novos imóveis, uma vez que os proprietários temem que, no futuro, possam ser obrigados a arrendá-los ao Estado. Isto contribuirá para uma redução na oferta de imóveis, o que, por sua vez, poderia aumentar os preços da habitação e dificultar ainda mais o acesso à mesma.
Por fim, é importantíssimo referir que o Estado tem bastantes imóveis devolutos. Quantos são? Ninguém sabe! Apesar do número ser ocultado, a Inspeção-Geral das Finanças é confirmou que são pelo menos quatro mil e quinhentos. Já o Sistema de Informação dos Imóveis do Estado apontou que são doze mil e quatrocentos e cinquenta e cinco e a Autoridade Tributária trinta e dois mil quinhentos e quarenta e seis. Até o Tribunal de Contas entra na batalha e arremata sessenta e três mil. Independentemente de quem tem razão, qualquer um destes números é alto, por isso seria sempre melhor colocar recuperar e arrendar os imóveis públicos invés de obrigar os proprietários a disponibilizarem os seus.
Há quem argumente que esta medida não restringe o direito à propriedade privada, visto que o imóvel continua a ser do proprietário e as rendas ser-lhe-ão reencaminhadas. A prova de que isto não é verdade é a resposta da seguinte pergunta: E se o proprietário não quiser disponibilizar a sua propriedade? “Só há duas formas disto funcionar: ou ameaçar os proprietários de crime de desobediência, se não abrirem a porta voluntariamente, ou arrombando as portas dos imóveis.”, afirma Jorge Pereira da Silva, referindo também que não vê como é que a medida pode passar no crivo do Tribunal Constitucional. “Ou há indemnização, e não estou a falar da renda, estou a falar de uma indemnização contemporânea do ato de tomada de posse administrativa, ou então não vejo como é que esta medida pode superar o teste da proporcionalidade e em particular o da necessidade.”
O direito de propriedade é um direito fundamental garantido pela maioria das constituições e convenções internacionais. O Estado tem o dever de proteger e garantir o direito de propriedade dos seus cidadãos, não podendo interferir arbitrariamente na propriedade privada. Portanto, a interferência do Estado na propriedade privada deve ser limitada e justificada por razões de interesse público. No caso da medida de arrendamento forçado, pode-se argumentar que ela é uma forma de violação do direito de propriedade, uma vez que obriga o proprietário a ceder o seu imóvel sem a sua vontade. Além disso, a medida pode levar a uma ineficiente utilização dos imóveis devolutos, já que o proprietário não terá incentivos para mantê-lo em boas condições ou investir em melhorias. Portanto, é importante que o Estado encontre outras formas de garantir o acesso à habitação sem violar o direito de propriedade. Isso pode incluir a construção de habitações sociais, a concessão de subsídios para o pagamento das rendas, a promoção de incentivos fiscais para proprietários que disponibilizem os seus imóveis para locação ou para aquele que pretendem construir novas habitações, entre outras medidas. Desta forma, é possível combater a falta de habitação sem interferir arbitrariamente na propriedade privada dos cidadãos.
Creio que, com base nas razões com que sustentei a minha tese e nos exemplos com que as ilustrei, posso concluir que, embora a obrigação de arrendamento dos imóveis devolutos possa parecer uma medida justa e necessária para combater a falta de habitação, é importante avaliar cuidadosamente a sua eficácia e os possíveis impactos negativos sobre o direito de propriedade. É essencial que o Estado encontre outras formas de garantir o acesso à habitação sem violar arbitrariamente o direito de propriedade dos cidadãos.
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